Michel Foucault e a Medicina Social


Vamos analisar a noção estudada (relações de saber/poder), em um trecho de uma conferência que Foucault realizou no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em outubro de 1974, traduzido por Roberto Machado. A conferência se chama: O nascimento da medicina social. Ela se encontra na obra de Michel Foucault: Microfísica do poder.

Lemos com atenção o trecho:

Intervém um curioso mecanismo que se podia esperar, mas que não entra no esquema habitual dos historiadores da medicina. Qual foi a reação da classe burguesa que, sem exercer o poder, detido pelas autoridades tradicionais, o reivindicava? Ela lançou mão de um modelo de intervenção muito bem estabelecido, mas raramente utilizado. Trata-se do modelo médico e político da quarentena.

Desde o fim da Idade Média, existia, não só na França mas em todos os países da Europa, um regulamento de urgência, como se chamaria em termos contemporâneos, que devia ser aplicado quando a peste ou uma doença epidêmica violenta aparecesse em uma cidade. Em que consistia esse plano de urgência?

1º) Todas as pessoas deviam permanecer em casa para serem localizadas em um único lugar.Cada família em sua casa e, se possível, cada pessoa em seu próprio compartimento. Ninguém se movimenta.

2º) A cidade devia ser dividida em bairros que se encontravam sob a responsabilidade de uma autoridade designada para isso. Esse chefe de distrito tinha sob suas ordens inspetores que deviam durante o dia percorrer as ruas, ou permanecer em suas extremidades, para verificar se alguém saia de seu local. Sistema, portanto, de vigilância generalizada que dividia, esquadrinhava o espaço urbano.

3º) Esses vigias de rua ou de bairro deviam fazer todos os dias um relatório preciso ao prefeito da cidade para informar tudo que tinham observado. Sistema, portanto, não somente de vigilância, mas de registro centralizado.

4º) Os inspetores deviam diariamente passar em revista todos os habitantes da cidade. Em todas as ruas por onde passavam, pediam a cada habitante para se apresentar em determinada janela, de modo que pudessem verificar, no registro−geral, que cada um estava vivo. Se, por acaso, alguém não aparecia, estava, portanto, doente, tinha contraído a peste era preciso ir buscá−lo e colocá−lo fora da cidade em enfermaria especial. Tratava−se, portanto, de uma revista exaustiva dos vivos e dos mortos.

5º) Casa por casa, se praticava a desinfecção, com a ajuda de perfumes que eram queimados.

Esse esquema da quarentena foi um sonho político−médico da boa organização sanitária das cidades, no século XVIII. Houve fundamentalmente dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. Na Idade Média, o leproso era alguém que, logo que descoberto, era expulso do espaço comum, posto fora dos muros da cidade, exilado em um lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros. O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano. Medicalizar alguém era mandá−lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros. A medicina era uma medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos, malfeitores, etc., em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema. Em compensação, existe um outro grande esquema político−médico que foi estabelecido, não mais contra a lepra, mas contra a peste. Neste caso, a medicina não exclui, não expulsa em uma região negra e confusa. O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá−los, individualizá−los, vigiá−los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos.

Tem−se, portanto, o velho esquema médico de reação á lepra que é de exclusão, de exílio, de forma religiosa, de purificação da cidade, de bode expiatório. E o esquema suscitado pela peste; não mais a exclusão, mas o internamento; não mais o agrupamento no exterior da cidade, mas, ao contrário, a análise minuciosa da cidade, a análise individualizante, o registro permanente; não mais um modelo religioso, mas militar. É a revista militar e não a purificação religiosa que serve, fundamentalmente, de modelo longínquo para esta organização político−médica.

A medicina urbana com seus métodos de vigilância, de hospitalização, etc., não é mais do que um aperfeiçoamento, na segunda metade do século XVIII, do esquema político−médico da quarentena que tinha sido realizado no final da Idade Média, nos séculos XVI e XVII. A higiene pública é uma variação sofisticada do tema da quarentena e é dai que provém a grande medicina urbana que aparece na segunda metade do século XVIII e se desenvolve sobretudo na França.

Primeiramente, lembremos-nos da noção de poder em Foucault, ou melhor, as relações de poder. Como vimos no vídeo, o poder não é acúmulo de conhecimento, não é posse de um grupo e não é concentrado em uma cultura que reprime. O poder não é uma substância, sujeito, entidade, classe dominante ou um Estado.

As relações de poder são relações de forças; é uma ação sobre outra ação. Que é necessariamente exercida por meio de um saber, e por isso, tais relações entre poder e saber são intrínsecas. Ou seja, as relações de poder só podem ser conhecidas por meio das relações de saber. Poder sem saber não é formal.

Depois de retomada a noção de relações de poder, podemos identificá-las no texto apresentado acima.

“Trata-se do modelo médico e político da quarentena”: diz respeito a um saber médico e político? Foucault diz que é um “plano de urgência”, que existia na Europa desde o fim da Idade Média.

Foucault destaca cinco aspectos deste “regulamento de urgência”. No geral são: 1º) Pessoas em seus compartimentos; 2º) Vigilância; 3º) Registrar; 4º) Revistar; 5º) Desinfecção. Outro ponto a destacar é: “Esse esquema da quarentena foi um sonho político-médico da boa organização sanitária das cidades no século XVIII”. Ora, para uma “boa organização” é necessário um saber vigente de um dado espaço em um determinado tempo. E que saber é este? Podemos deduzir que se trata do saber médico?

Vimos que o texto apresenta um espaço de desorganização suscitado pelas doenças. O saber médico, no momento histórico apresentado, será o responsável por organizar o meio caótico. De qual momento histórico Foucault está falando?

Antes, analisemos os “dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste”. Avançando na leitura, quais as diferenças dos dois modelos de “poder político da medicina”? Basicamente: contra a lepra, “um modelo religioso”; contra a peste, “revista militar”.

No último parágrafo encontramos uma precisão dos períodos históricos: século XVI ao XVIII. E qual espaço geográfico o texto nos chama a atenção? A “grande medicina urbana que aparece na segunda metade do século XVIII e se desenvolve, sobretudo, na França”.

Retomando os pontos principais de nossa leitura analítica, podemos concluir: todas as técnicas exercidas pelo modelo da quarentena foram através de um saber médico próprio da Europa no final da Idade Média. E que se aperfeiçoou na segunda metade do século XVIII, principalmente na França, originando a medicina urbana (caracterizada, sobretudo, pelos métodos de vigilância).

Portanto, as relações de poder se mostram, todas no trecho do texto de Foucault que analisamos, na prática, ou em prática. E pudemos constatar que se exercem através do saber político da medicina, naquele dado momento. 

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