Vamos colocar em prática o que aprendemos na análise anterior (do trecho da conferência: O nascimento da medicina social). Em outro trecho de outra conferência que Foucault realizou no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em outubro de 1974, traduzido por Roberto Machado. A conferência se chama: O nascimento do hospital. Ela se encontra na obra de Michel Foucault: Microfísica do poder.
Após a leitura do trecho, realizem uma análise
identificando as relações de poder em suas circunstâncias:
Admitindo−se a hipótese do duplo
nascimento do hospital pelas técnicas de poder disciplinar e médica de
intervenção sobre o meio, pode−se compreender várias características que ele
possui:
1º) A questão do hospital, no final do
século XVIII,. é fundamentalmente a do espaço ou dos diferentes espaços a que
ele está ligado. Em primeiro lugar, onde localizar o hospital, para que não continue
a ser uma região sombria, obscura, confusa em pleno coração da cidade, para
onde as pessoas afluem no momento da morte e de onde se difundem,
perigosamente, miasmas, ar poluído, água suja, etc.? É preciso que o espaço em
que está situado o hospital esteja ajustado ao esquadrinhamento sanitário da
cidade. É no interior da medicina do espaço urbano que deve ser calculada a
localização do hospital.
Em segundo lugar, é preciso não somente
calcular sua localização, mas a distribuição interna de seu espaço. Isso será
feito em função de alguns critérios: se é verdade que se cura a doença por uma
ação sobre o meio, será necessário constituir em torno de cada doente um
pequeno meio espacial individualizado, específico, modificável segundo o
doente, a doença e sua evolução. Será preciso a realização de uma autonomia
funcional, médica, do espaço de sobrevivência do doente. É assim que se
estabelece o princípio que não deve haver mais de um doente por leito, devendo ser
suprimido o leito dormitório onde se amontoavam até seis pessoas. Será, também,
necessário construir em torno do doente um meio manipulável que possibilite
aumentar a temperatura ambiente, refrescar o ar, orientá−lo para um único
doente, etc. Daí as pesquisas. feitas para individualizar o espaço de
existência, de respiração dos doentes mesmo em salas coletivas. Houve, por
exemplo, o projeto de encapsular o leito de cada doente em um tecido que
permitisse a circulação do ar, mas bloqueasse os miasmas.
Tudo isso mostra como, em sua estrutura
espacial, o hospital é um meio de intervenção sobre o doente. A arquitetura do
hospital deve ser fator e instrumento de cura. O hospital−exclusão, onde se
rejeitam os doentes para a morte, não deve mais existir. A arquitetura
hospitalar é um instrumento de cura de mesmo estatuto que um regime alimentar,
uma sangria ou um gesto médico. O espaço hospitalar é medicalízado em sua
função e em seus efeitos.− Esta é a primeira característica da transformação do
hospital no final do século XVIII.
2º) Transformação do sistema de poder no
interior do hospital. Até meados do século XVIII quem aí detinha o poder era o
pessoal religioso, raramente leigo, destinado a assegurar a vida cotidiana do hospital,
a salvação e a assistência alimentar das pessoas internadas. O médico era
chamado para os mais doentes entre os doentes, era mais uma garantia, uma
justificação, do que uma ação real. A visita médica era um ritual feito de modo
irregular, em princípio uma vez por dia, para centenas de doentes. O médico
estava, além disso, sob a dependência administrativa do pessoal religioso que
podia inclusive despedi−lo.
A partir do momento em que o hospital é
concebido como um instrumento de cura e a distribuição do espaço torna−se um
instrumento terapêutico, o médico passa a ser o principal responsável pela organização
hospitalar. A ele se pergunta como se deve construí-lo e organizá−lo, e é por
este motivo que Tenon faz seu inquérito. A partir de então, a forma do
claustro, da comunidade religiosa, que tinha servido para organizar o hospital,
é banida em proveito de um espaço que deve ser organizado medicamente. Além
disso, se o regime alimentar, a ventilação, o ritmo das bebidas, etc., são
fatores de cura, o médico, controlando o regime dos doentes, assume, até certo
ponto, o funcionamento econômico do hospital, até então privilégio das ordens
religiosas. Ao mesmo tempo, a presença do médico se afirma, se multiplica no
interior do hospital. O ritmo das visitas aumenta cada vez mais durante o
século XYIII. Se em 1680 havia no Hôtel−Dieu de Paris uma visita por dia, no
século XVIII − aparecem vários regulamentos que sucessivamente precisam que
deve haver uma outra visita, à noite, para os doentes mais graves; que deve
haver uma outra visita para todos os doentes; que cada visita deve durar duas
horas e finalmente, em torno de 1770, que um médico deve residir no hospital e
pode ser chamado ou se locomover a .qualquer hora do dia ou da noite para
observar o que se passa.
Aparece, assim, o personagem do médico
de hospital, que antes não havia. O grande médico, até o século XVIII, não
aparecia no hospital; era o médico de consulta privada, que tinha adquirido prestigio
graças a certo número de curas espetaculares. O médico que as comunidades
religiosas chamavam para fazer visitas aos hospitais era, geralmente, o pior
dos médicos. O grande médico de hospital, aquele que será mais sábio quanto
maior for sua experiência hospitalar, é uma invenção do final do século XVIII.
Tenon, por exemplo, foi um médico de hospital e Pinel pôde fazer o que fez em
Bicêtre graças a sua situação de detentor do poder no hospital.
Essa inversão das relações hierárquicas
no hospital, a tomada de poder pelo médico, se manifesta no ritual da visita,
desfile quase religioso em que o médico, na frente, vai ao leito de cada doente
seguido de toda a hierarquia do hospital: assistentes, alunos, enfermeiras,
etc. Essa codificação ritual da visita, que marca o advento do poder médico, é
encontrada nos regulamentos de hospitais do século XVIII, em que se diz onde
cada pessoa deve estar colocada, que o médico deve ser anunciado por uma
sineta, que a enfermeira deve estar na porta com um caderno nas mãos e deve acompanhar
o médico quando ele entrar, etc.
3º) Organização de um sistema de
registro permanente e, na medida do possível, exaustivo, do que acontece. Em
primeiro lugar, técnicas de identificação dos doentes. Amarra−se no punho do doente
uma pequena etiqueta que permitirá distinguí−lo mesmo se vier a morrer. Aparece
em cima do leito a ficha com o nome e a doença do paciente. Aparece, também,
uma série de registros que acumulam e transmitem informações: registro geral
das entradas e saídas em que se anota o nome do doente, o diagnóstico do médico
que o recebeu, a sala em que se encontra e, depois, se morreu ou saiu curado;
registro de cada sala feito pela enfermeira−chefe; registro da farmácia em que
se diz que receitas e para que doentes foram despachadas; registro do médico
que manda anotar, durante a visita, as receitas e o tratamento prescritos, o
diagnóstico, etc. Aparece, finalmente, a obrigação dos médicos confrontarem
suas experiências e seus registros − ao menos uma vez por mês, segundo o
regulamento do Hôtel−Dieu de 1785 − para ver quais são os diferentes tratamento
aplicados, os que têm melhor êxito, que médicos têm mais sucesso, se doenças
epidêmicas passam de uma sala para outra, etc.
Constitui−se, assim, um campo documental
no interior do hospital que não é somente um lugar de cura, mas também de
registro, acúmulo e formação de saber. E então que o saber médico que, até o
início do século XVIII, estava localizado nos livros, em uma espécie de
jurisprudência médica encontrada nos grandes tratados clássicos da medicina,
começa a ter seu lugar, não mais no livro, mas no hospital; não mais no que foi
escrito e impresso, mas no que é quotidianamente registrado na tradição viva,
ativa e atual que é o hospital. E assim que naturalmente se chega, entre 1780/1790,
a afirmar que a formação normativa de um médico deve passar pelo hospital. Além
de ser um lugar de cura, este é também lugar de formação de médicos. A clínica
aparece como dimensão essencial do hospital.
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